Na invernada da Tamanca
“Hay una hora de la tarde em que la llanura esta por decir algo; nunca lo dice, o tal vez lo dice infinitamente y no lo entendemos, o lo entendemos pero es intraducible como una música...”
Jorge Luis Borges
Aproveitando este espaço, me proponho a inaugurar um novo ciclo entre outras coisas que por acaso venham me ocorrer, contar um pouco de histórias, de versos, músicas, situações em que elas surgiram e se desenvolveram, não todas que compus, algumas mais interessantes ou que resultaram em algum proveito; de qualquer forma, para iniciar gostaria de começar pelo início.
Era fevereiro do verão do ano 2000, estávamos eu e o meu bom amigo Ricardo Karini, o Karini, ou turco, me confessou há pouco que é descendente materno do povo patrulhense que se perdeu povoando o Rio Grande, é da gente daí dos pagos do barro vermelho. Mas bueno, nessa ocasião, entre um talho e outro na carne, me contou que o seu cunhado iria gravar um novo CD, e que desta vez seria gravado ao vivo e em uma estância. Coincidências a parte, a estância escolhida e tratada foi no município de Santa Vitória do Palmar, Estância Tamanca, dos meus grandes amigos da família Terra, tio Lauro e dona Cléo (in memorian), Luciano, Ricardo e Francisco. Era o 3º trabalho do cantor Joca Martins, o “Buena Vida”.
A Tamanca, situada à beira da BR 471 para quem avistar na reta que se dirige ao extremo sul, sempre foi para mim, e para muitos que por ali estiveram, um centro atávico de cultura. Ali se cultuou (e ainda se cultua) as nossas sagradas tradições, tive o privilégio de conviver com esses amigos e embora não conheça a palmo a estância, sei bem de seus proprietários, de seus costumes, da sua índole e por isso, nessa mesma noite me sentei à mesa do computador, na madrugada, entre umas e outras a contar a sua e a nossa história.
Na invernada da Tamanca
Crioula e de marca a tropilha da estância
trazendo na essência o sangue Cardal,
marcheiro gateado, eguada rosilha,
e a moura pra encilha babando o bocal !
Um vento parceiro levanta bem cedo
cobrindo os tapumes, entanguindo o lugar,
e o baio cebruno, pingaço de freio,
parceiro de lado que vem paletear !
De longe a boieira, prelúdio de campo,
no manso recanto dobrando o treval,
boiada fumaça, brazina e polianga
graxeando a picanha pelo pastiçal !
Um bando emplumado revoa na aguada,
resteva deixada juntou tacurus,
terneiros cruzados costeando o alambrado,
recém desmamados, espantam ñandus !
Um berro de touro ressona no mato,
um bater de cascos que chega e some,
uma lebre levanta e dispara ligeira,
gambeta de orelha nos dois Cimarrones !
Então desencilha o lombo da tarde
no esteio benzido pela tradição,
rincão do Rio Grande que o sul te fez verso
e agora descansa ao pé do fogão !
Mateando com a noite, trançando invernias,
templo e sacristia que um cerno sustenta,
e às vezes agüenta na quincha a saudade,
sovéu de amizade que nunca arrebenta !
Na manhã seguinte ao escrito, enviei ao Joca a letra que, quando a recebeu me retrucou dizendo que era isso que faltava para o CD, e assim foi feito o chamamé, meio que encima do laço e em uma semana estávamos todos acampados na sede da estância para a gravação do disco; Eu e o Karini na culatra e pela farra, os proprietários também, é claro, o Vitor Hugo Duarte do estúdio Luvi que Santo Antônio conhece há anos da Moenda, Gujo Teixeira nas fotografias, o protagonista Joca Martins, seu irmão e maestro Negrinho Martins, acordeom do literalmente grande Luciano Maia, recitados e a bóia bueníssima do Marco Antônio Xirú Antunes e dom Lúcio Yanel debulhando as cordas de sua guitarra. A gravação foi numa toma de uns dois, três dias e, entre visitas de outros amigos, à noite muita carne gorda e cerveja gelada pra abrandar os calorões daquele ano.
Daí até sair o Compact Disc, na época, ocorreu outro feito, só havia tempo de mandar para um festival antes da chegada do disco, era o 15º Carijo da Canção de Palmeira das Missões, lá do outro lado do estado e bueno,, lá fomos nós, outono de maio, cruzando o Rio Grande um dia antes do festival, em busca de sonhos, direto a um pouso em Santo Augusto, onde fomos recebidos em uma casa vazia de gente na Estância do Turvo, da família Sperotto Terra, que enchemos de alegrias com nossos sorrisos de principiantes (no caso o meu). Lá, além de lenha pra o fogo, bem embalado numa geladeira tinha um costilhar de novilho cortado à parrilla e um bom estoque de geladas que o capataz, por determinação dos nossos amigos, tinha providenciado para o assado na lareira e, mal começávamos a prosear mais largo quando amanheceu... Ocorrido o festival no sábado, conheci novos cenários e no domingo, depois de a gurizada dar o nosso recado, ainda tive o prazer de levantar o meu primeiro troféu, um terceiro lugar, um pé de erva mate (da Palmeira) de meio metro de madeira entalhada que me observa agora enquanto escrevo esta crônica.
Assim foi feito Na invernada da Tamanca, parceria minha e do Joca Martins, um chamamé, que me lançou a um mundo; eu, só mais um no meio de tantos, mas para mim ainda teve um gosto especial, um gosto que a estrada empoeirada ainda não me tirou.
Rincão das Corticeiras, 10 de janeiro de 2011
- Christian Davesac também participa do projeto colunistas, www.radiosul.net com novo texto – “Cobra de fogo...é M’boitatá” - confira