sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Reflexões Tempestivas - por Artur P. dos Santos

ERA QUASE PRIMAVERA

P/Artur Pereira dos Santos


Bastou pouco mais de meio quarteirão para observar a miséria em uma tarde comum.
Enquanto caminhava lentamente à sombra das árvores que ladeiam a avenida, ia à minha frente um homem maltrapilho: Calças esfarrapadas, ambas as pernas arregaçadas até quase aos joelhos, deixavam à mostra tatuagens sobrepostas, que impediam a descrição do que continha em cada espaço desordenadamente ocupado.
Elevando o olhar percebi que não eram apenas as tatuagens que careciam de ordem e nitidez. Os trapos completavam o quadro rústico encimado por uma cabeça, onde há muito não havia qualquer alinhamento.
Cabelos grandes e desgrenhados pareciam refletir o que cobriam: um cérebro em desalinho.
Seus passos tornaram-se mais rápidos ao avistar o contêiner de lixo postado próximo a uma das árvores. Continuei a olhá-lo pelas costas, enquanto debruçava-se sobre a borda procurando algo indefinido. Não era difícil imaginar do que se tratava.
A curiosidade fez-me parar logo adiante e esperá-lo, tinha quase certeza de que se tratava de uma pessoa jovem, o que comprovei tão logo aprumou o corpo e caminhou na direção de uma pequena lixeira oval, dessas que são afixadas em vários pontos da cidade. 
Vi balançar negativamente a cabeça, enquanto as mãos traçavam figuras no ar, como se falasse com alguém que só ele enxergava. Imaginei sua decepção por não ter encontrado o que procurava no coletor de lixo maior. Vá alguém saber por quanto tempo não se alimentava, pois em seu rosto eram visíveis as marcas da subnutrição.
A esquina da rua delimitou nossos caminhos: Ele passou para o outro lado da avenida em busca de outras fontes que saciassem sua necessidade e eu segui em frente antes que o sinal fechasse.
Ao atravessar diagonalmente a pracinha em frente ao supermercado, onde dezenas de ambulâncias ou carros de transporte de pessoas que consultam médicos na capital fazem ponto, deparei-me com um senhor de idade avançada, também mal vestido, sentado em um banco. Parecia esperar que alguém passasse ali e lhe prestasse um favor.
Logo que me aproximei esticou o braço e fez menção de entregar-me uma sacola contendo alguma coisa, pediu-me, em voz baixa, que a entregasse à Maria, apontando para outro banco a poucos metros, onde uma mulher, não menos maltrapilha, parecia dormir ao sol da meia tarde.
De início desconfiei, lembrando que poderia ser alguma coisa ilegal que quisesse passar a outra pessoa sem que as suspeitas recaíssem sobre ele. Quando vi, pela transparência da sacola, que nela continha um pãozinho e uma pequena caixa de papelão, aparentando conter uma espécie de geléia, concordei em prestar-lhe o favor.
Estendi o braço e levei a sacola até onde estava a mulher, que nem se deu ao trabalho de abrir os olhos, apenas balbuciou alguma coisa inteligível e continuou deitada. Certamente percebera a conversa entre mim e seu amigo.
Segui adiante pensando nas palavras de Victor Hugo: Só faltava, em pouco mais de meio quarteirão, ver a pior das misérias: a da criança, que, segundo ele, era pior que a da mulher, que era pior que a do homem.
Encontrei-a ao lado da porta do supermercado, de mão estendida implorava uma moedinha.

3 comentários:

  1. Sensibilidade para enxergar as coisas do cotidiano realmente não é prá qquer um ... Comovente, linda! Abs,

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  2. Infelizmente amiga , é a nossa realidade

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  3. Adoro textos bem escritos como esse que descrevem tão intimamente a percepção do homem em relação as coisas que parece descrever o que nós mesmos pensamos nos devaneios da nossa mente. Ótimo! ;)

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