quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A Torre

Erguia-se imponente em meio à campina. Miosótis azuis brilhavam por entre o verde luxuriante. Próximos ao fosso alvos copos-de-leite contrastavam com as velhas pedras cinzentas.

Aproximou-se, sorrindo, ao ver a ponte levadiça arriada como a dar-lhe boas-vindas.

Vinha cansado. A viagem fora longa e a decisão de voltar, difícil.

Há quanto tempo partira?

Sua memória o traía.

Ás vezes pensava ter sido ontem mas, se já era primavera e o sol brilhava, não teria sido, pois ao partir nevava intensamente.

Tremeu lembrando-se do frio que sentira entre as paredes da torre e do grande anseio em partir.

Fora o frio que o fizera lançar-se para longe, fugindo dali?

Talvez!

Mas, se fora o frio, como ter ali vivido tantos tempos sem sentir frio?

Antes do frio tocá-lo, entre as paredes da torre havia aconchego, lareiras acesas, flores nos vasos e, nas noites em que a tempestade rugia, sentia-se seguro, abrigado e feliz.

Então, por quê, de repente, sentira tanto frio?

Por que aquela ânsia de partir em busca de sol e calor?

Não o sabia!

Só sabia que partira e, ao fazê-lo, deixara desolação atrás de si.

Voltara e não havia desolação. Havia sol e flores, canto de pássaros e mergulhar de água e, acima de tudo, a solidez perene da torre.

A torre era imbatível!

De suas ameias podia-se divisar um amplo horizonte. Distinguir qual o estandarte que se aproximava, prevenir cada ataque içando a ponte. Aquecer a lareira, assar pães, partilhar a sopa se a bandeira fosse de paz.

Naquele tempo, antes do frio tomar conta de sua alma, a torre era abrigo depois da batalha, era tranqüilidade nas tardes estivais, era felicidade ao som do riso e da música, era tudo o que ele almejava.

De repente, tudo mudara.

Será que a torre mudara ou fora nele que a mudança se fizera?

Sofreou a montaria e tentou lembrar-se. Viu o olhar atônito da mulher amada, a lenta lágrima correr em sua face, a pergunta muda em seus lábios.

Por quê?

Não havia resposta. Apenas começara a sentir frio, muito frio. Frio e escuridão, e então partira, naquela tarde desoladora e triste, prometendo-se voltar, e ali estava ele, voltando.

À sua volta, a primavera regurgitava de vida, como dantes, quando fora feliz ali, e seu coração bateu forte com a lembrança do amor que vivenciara.

Quanto tempo se passara?

Pareciam-lhe séculos.

Lutara muitas batalhas, vencera algumas, perdera outras. Percorrera tantos caminhos, andara pelos quatro cantos do mundo e então encontrara o caminho de volta à torre e, ali, estava ele em frente à ponte arriada.

Puxou as rédeas e parou ante o fosso, olhando temeroso a boca negra que se abria a sua frente na parede cinzenta, em contraste com a rutilante luz que o iluminava.

Teve medo. Um medo insano, desumano, cruel. A angústia apossou-se dele e indagou-se:

“O que deixei? O que encontrarei agora, que voltei?”

As lembranças do que deixara apagaram-se de sua memória e apenas o frio que sentira ao partir, agarrava-se às suas entranhas.

O por quê do frio, se o aroma da sopa se evola no ar? Se o som dos risos ecoa nas paredes? Se a azáfama da vida, num fim de tarde, cria um cicio como de cigarras no estio?

O cavalo, sentindo a inquietação de seu amo, refugou. Soltou um longo relincho, querendo avançar e aguardando a ordem.

Pensou, entre brumas de desejos, de ir em frente e fugir:

“Ainda há tempo de retroceder. É primavera! Abrigar-me-ei no campo e dormirei sob as estrelas.”

“Já fiz isto antes, muitas e muitas vezes.”

E, então, o anseio de estar de volta apossou-se dele e incitou o cavalo.

“Em frente, ande, chegamos ao aconchego. Aqui há água fresca, palha macia, aveia saborosa, descanso,...”

O porquê da hesitação?

Quem responderá?

E o cavaleiro foi em frente, vencendo mais um desafio.

No pátio, tudo estava tranqüilo, parecia que aguardavam sua volta e lhe sorriram sem surpresa e sem tropelias.

“Parece que parti ao amanhecer e retorno de um passeio e tudo está em ordem”, pensou.

Mas, partira há tanto tempo que não recordava se era esta a forma de ser recebido ao entardecer. Estranhou um pouco que ninguém acorresse para recebê-lo. Sentia-se invisível, pois que o povo da torre seguia seus afazeres sem lhe dar nenhuma atenção e sequer interpelá-lo.

Desmontou, deu de beber ao cavalo e sedento quase bebeu do balde ao lado do poço, mas lembrou-se do chá e do vinho do salão principal e resistiu.

Ao rés do chão nada lhe parecia mudado, embora a vaga sensação persistisse. Subiu, passo a passo, a escadaria e chegou ao grande salão.

Quantas e belas horas vivera ali!

Honrado, homenageado, acalentado e aquecido.

Lembranças ou sonhos?

Amigos, parentes, vizinhos, aglomeravam-se no ponto mais distante. Não pareciam dar por sua presença. Não notavam que voltara, então pigarreou, arrastou as esporas enlameadas querendo chamar-lhes a atenção, acenou e sorriu e todos se voltaram para vê-lo.

Sentiu-se pequeno ante os olhares de seu povo. Quis falar e não lhe saiu a voz. Quis alargar seu sorriso e este se transformou num esgar em sua face e, num mágico lampejo, compreendeu...

- Solide Costa -

Um comentário:

  1. Que maravilha te encontrar por aquí Solide. E estreando com tão belo texto. Fico feliz por ti e pelo Insônias. Não nos abandone! Bjs

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