Erguia-se imponente em meio à campina. Miosótis azuis brilhavam por entre o verde luxuriante. Próximos ao fosso alvos copos-de-leite contrastavam com as velhas pedras cinzentas.
Aproximou-se, sorrindo, ao ver a ponte levadiça arriada como a dar-lhe boas-vindas.
Vinha cansado. A viagem fora longa e a decisão de voltar, difícil.
Há quanto tempo partira?
Sua memória o traía.
Ás vezes pensava ter sido ontem mas, se já era primavera e o sol brilhava, não teria sido, pois ao partir nevava intensamente.
Tremeu lembrando-se do frio que sentira entre as paredes da torre e do grande anseio em partir.
Fora o frio que o fizera lançar-se para longe, fugindo dali?
Talvez!
Mas, se fora o frio, como ter ali vivido tantos tempos sem sentir frio?
Antes do frio tocá-lo, entre as paredes da torre havia aconchego, lareiras acesas, flores nos vasos e, nas noites em que a tempestade rugia, sentia-se seguro, abrigado e feliz.
Então, por quê, de repente, sentira tanto frio?
Por que aquela ânsia de partir em busca de sol e calor?
Não o sabia!
Só sabia que partira e, ao fazê-lo, deixara desolação atrás de si.
Voltara e não havia desolação. Havia sol e flores, canto de pássaros e mergulhar de água e, acima de tudo, a solidez perene da torre.
A torre era imbatível!
De suas ameias podia-se divisar um amplo horizonte. Distinguir qual o estandarte que se aproximava, prevenir cada ataque içando a ponte. Aquecer a lareira, assar pães, partilhar a sopa se a bandeira fosse de paz.
Naquele tempo, antes do frio tomar conta de sua alma, a torre era abrigo depois da batalha, era tranqüilidade nas tardes estivais, era felicidade ao som do riso e da música, era tudo o que ele almejava.
De repente, tudo mudara.
Será que a torre mudara ou fora nele que a mudança se fizera?
Sofreou a montaria e tentou lembrar-se. Viu o olhar atônito da mulher amada, a lenta lágrima correr em sua face, a pergunta muda em seus lábios.
Por quê?
Não havia resposta. Apenas começara a sentir frio, muito frio. Frio e escuridão, e então partira, naquela tarde desoladora e triste, prometendo-se voltar, e ali estava ele, voltando.
À sua volta, a primavera regurgitava de vida, como dantes, quando fora feliz ali, e seu coração bateu forte com a lembrança do amor que vivenciara.
Quanto tempo se passara?
Pareciam-lhe séculos.
Lutara muitas batalhas, vencera algumas, perdera outras. Percorrera tantos caminhos, andara pelos quatro cantos do mundo e então encontrara o caminho de volta à torre e, ali, estava ele em frente à ponte arriada.
Puxou as rédeas e parou ante o fosso, olhando temeroso a boca negra que se abria a sua frente na parede cinzenta, em contraste com a rutilante luz que o iluminava.
Teve medo. Um medo insano, desumano, cruel. A angústia apossou-se dele e indagou-se:
“O que deixei? O que encontrarei agora, que voltei?”
As lembranças do que deixara apagaram-se de sua memória e apenas o frio que sentira ao partir, agarrava-se às suas entranhas.
O por quê do frio, se o aroma da sopa se evola no ar? Se o som dos risos ecoa nas paredes? Se a azáfama da vida, num fim de tarde, cria um cicio como de cigarras no estio?
O cavalo, sentindo a inquietação de seu amo, refugou. Soltou um longo relincho, querendo avançar e aguardando a ordem.
Pensou, entre brumas de desejos, de ir em frente e fugir:
“Ainda há tempo de retroceder. É primavera! Abrigar-me-ei no campo e dormirei sob as estrelas.”
“Já fiz isto antes, muitas e muitas vezes.”
E, então, o anseio de estar de volta apossou-se dele e incitou o cavalo.
“Em frente, ande, chegamos ao aconchego. Aqui há água fresca, palha macia, aveia saborosa, descanso,...”
O porquê da hesitação?
Quem responderá?
E o cavaleiro foi em frente, vencendo mais um desafio.
No pátio, tudo estava tranqüilo, parecia que aguardavam sua volta e lhe sorriram sem surpresa e sem tropelias.
“Parece que parti ao amanhecer e retorno de um passeio e tudo está em ordem”, pensou.
Mas, partira há tanto tempo que não recordava se era esta a forma de ser recebido ao entardecer. Estranhou um pouco que ninguém acorresse para recebê-lo. Sentia-se invisível, pois que o povo da torre seguia seus afazeres sem lhe dar nenhuma atenção e sequer interpelá-lo.
Desmontou, deu de beber ao cavalo e sedento quase bebeu do balde ao lado do poço, mas lembrou-se do chá e do vinho do salão principal e resistiu.
Ao rés do chão nada lhe parecia mudado, embora a vaga sensação persistisse. Subiu, passo a passo, a escadaria e chegou ao grande salão.
Quantas e belas horas vivera ali!
Honrado, homenageado, acalentado e aquecido.
Lembranças ou sonhos?
Amigos, parentes, vizinhos, aglomeravam-se no ponto mais distante. Não pareciam dar por sua presença. Não notavam que voltara, então pigarreou, arrastou as esporas enlameadas querendo chamar-lhes a atenção, acenou e sorriu e todos se voltaram para vê-lo.
Sentiu-se pequeno ante os olhares de seu povo. Quis falar e não lhe saiu a voz. Quis alargar seu sorriso e este se transformou num esgar em sua face e, num mágico lampejo, compreendeu...
- Solide Costa -
Que maravilha te encontrar por aquí Solide. E estreando com tão belo texto. Fico feliz por ti e pelo Insônias. Não nos abandone! Bjs
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