Aparecida era diferente das outras moças da cidade. Com dezoito anos, não era bonita nem feia. Quase nunca sorria. Os cabelos sempre presos, os olhos negros sem brilho, as roupas grandes no corpo franzino, parecia não gostar da vida.
Passava noites e dias sentada no vão da porta, à beira da rua dos Pinheiros.
Não fazia crochê, não pensava em enxoval. Não lia nem assistia às novelas. Raramente conversava com alguém que por ali passasse. As crianças achavam graça dela.
Só o que lhe interessava era a passagem do rabecão. Sereno, o responsável local pelo recolhimento dos defuntos, era moço quieto, talvez castigado pela companhia dos mortos. Já se acostumara com a perseguição não explicada da Aparecida. O carro passava, ela corria até o necrotério, que era logo na próxima quadra de casa.
O povo dizia: “Lá vai a Aparecida, correr atrás da morte”.
E ela ia mesmo. Corria até o pequeno necrotério, se esticava pela janela. Observava com atenção cada detalhe. Parecia fascinada por aqueles rostos que já haviam perdido a expressão.
Nesses momentos, os olhos bem abertos, parecia quase feliz.
Sereno não se importava. Já iam três anos que isso se repetia. Sequer se perguntava por que isso acontecia. Deixava-a quieta. Era bom ter companhia, apesar de nunca ter ouvido sua voz.
Assim passavam as noites e os dias da vida de Aparecida.
O povo comentava. Sereno não se importava. Aparecida nem dormia, antes agonizava.
Ansiava pela doença ou por alguma tragédia que iriam lhe proporcionar aqueles instantes. Os únicos em que sentia o sangue lhe correr de verdade nas veias.
Até que a morte bateu em sua porta. Viera buscar seu avô, com quem morava desde que os pais morreram, quando tinha seis anos.
Fora criada por aquele senhor a quem nunca conheceu, que não lhe deu atenção e a fez trabalhar como uma escrava. Cuidara dele até o último instante, mas não sofria sua morte. Antes, sentia alívio. Nunca recebeu uma palavra de carinho. Apenas silêncio.
Tendo saído o médico, mandaram chamar Sereno para que viesse recolher o corpo. Pela primeira vez, ao invés de perseguir, Aparecida iria acompanhar o defunto. Pediu um instante para se trocar. Sereno percebeu que sua voz era doce. Respondeu que podia esperar. E esperou.
A moça saiu da casa com um vestido floral, simples, mas que fez com que o rapaz percebesse que, afinal de contas, ela era bonita. Estava com os cabelos soltos. Um olhar de contentamento.
- Finalmente sou livre, ela disse. – E nunca me interessei pelos mortos, Sereno. Sempre quis saber foi de ti.
O rapaz, que era também um solitário, percebeu que já se afeiçoara pela silenciosa companheira daqueles anos.
Entenderam-se num demorado abraço. Havia sido um curioso namoro de quatro anos. Mas ainda tinham que levar o defunto. Sentada no carro ao lado de Sereno, Aparecida segurava sua mão.
Afinal, não era atrás da morte que ela corria, era em direção à vida.
- Cássia -
Ah Cássia ... e quantas pessoas, no fundo, viveram ou vivem assim. Uma bela analogia ... (se é que é uma analogia ...). Valeu! Bjs, Rosalva
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