segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Lançamento Poesia na Praça

Memórias da Pinheiro por Rosalva Rocha

O “interromper” de um ciclo

(por Rosalva Rocha – 13/10/10)


Justamente no dia do meu aniversário no ano passado “ousei” escrever a primeira crônica para este blog. Simplesmente escrevi porque fiquei muito feliz em tomar conhecimento de um espaço dedicado à Pinheiro Machado , uma rua tão especial prá mim.

Jamais imaginei que teria continuidade, mas teve! E aconteceu graças à abertura que me foi dada pela Cássia e também pelas memórias que, aos poucos, foram surgindo do meu tempo de infância e adolescência nesta rua.

Foram postadas 25 crônicas e 1 homenagem e esses números me deixam muito feliz. Feliz porque conseguí deixar registradas histórias um tanto incomuns, mas todas verdadeiras, sem personagens fictícios ou mesmo “bordadas com pedrarias e rendas” para deixar os textos mais estéticos. Foram crônicas limpas! Algumas simplórias demais, outras engraçadas; outras um tanto nostálgicas e assim por diante. Mas estão aqui. E isto é o que importa!

Mas a minha memória se esvaiu ... e já não tenho mais o que contar sobre a Pinheiro que, pelo menos, extraia alguma curiosidade do leitor relativa àquela época.

Por essa razão, esta é a última crônica do espaço MEMÓRIAS DA PINHEIRO, esperando que um novo espaço me seja aberto para que eu continue colaborando com este blog, que é um dos meus prazeres. Mas, sabe-se lá se mais adiante não retornará um MEMÓRIAS DA PINHEIRO II? Uma incógnita!

O que pela minha cabeça passou ficou registrado e algumas curiosidades deixo aqui postadas, justamente para fazer um fechamento do que foi a minha vida até o ano de 1977 nesta rua. E esse fechamento, a meu ver, servirá como reflexão de como tudo mudou e continua mudando ... E nós (a grande maioria) continuamos aqui, batalhando, muitas vezes “matando cachorros a gritos”, nos envolvendo em inúmeras atividades, vivendo ... Muitos de nós já carregam meio-século nos ombros, mas isto não é sentido, pois sabemos que ainda temos muito caminho pela frente e muito por fazer - e com muito prazer!

Curiosidades:

- Somente aos 8 anos de idade fui assistir à uma TV em casa. E pasmem: era de 2ª. mão e preto & branco;

- Não convivi, nesse período, com telefone fixo em casa. Isto aconteceu depois que saí daqui – Celular? Nem falo nisto. Nossos encontros eram realizados verbalmente e tudo sempre saia da forma idealizada, fato que, atualmente, considero praticamente impossível. Penso que éramos mais responsáveis naquela época;

- Assistia aos “Eremitas” porque meu pai era “ludibriado” por minha prima Jussara, alegando que precisava de um “chá de pêra” para as matinés de domingo no Centro Clube;

- Na áurea fase da ditadura eu nem sabia o que era o DOPS – só tinha medo dos camburões que passavam e muito menos entendia o porquê que os meus pais sempre recusavam que eu participasse do Grêmio Estudantil do colégio;

- Não sabia que eu não podia falar mal do governo. E nem falava, pois de política não entendia nada (como não entendo até hoje e não tenho pretensão alguma de entender, dadas as circunstâncias que venho vivendo);

- A música “Cálice”, composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, na época, nunca me soou duplo sentido;

- Era uma menina travessa mas estudiosa, inteligente em algumas matérias e extremamente limitada em outras. Sou do tempo da alfabetização com o livrinho do Olavo e da Elida. Construtivismo? Nem imaginava que este método apareceria mais tarde;

- Fui da última turma do ginásio e não fiz admissão e, para a surpresa de muitos, da 1ª. turma de Auxiliar de Escritório no Colégio Santa Teresinha;

- Sou do tempo em que ter “amigos correspondentes” era o máximo. E tive vários! O sabor de receber uma carta de um “amigo que eu não conhecia pessoalmente” era algo indescritível – infelizmente coisas que não acontecem mais;

- Na adolescência, já delirava pelo Paulo Ricardo do RPM;

- Freqüentava o Bar do Ataíde todos os sábados e de lá sempre saia com os amigos para uma façanha literalmente “inventada”. Ah! como inventávamos e reinventávamos a nossa vida!

Posso garantir que eu não imaginava o que estava por vir. Minha vida tinha sido traçada de tal forma que absolutamente nada dentro dela, mas nada mesmo, seria mudado. E foi! E como foi! Meu rumo tomou diversas formas, minhas vontades e ideais também e, sobretudo, meus sonhos. Aquilo que, na época, era muito importante, com o passar do tempo passou a ser irrelevante e o meu caminho foi fluindo.

Como estou no meio da caminhada, espero sinceramente que as próximas estradas me reservem algo similar: muitos encantos guardados na minha alma e, para contrabalancear e me fazer crescer, alguns desencantos. Mas nenhum deles que me faça cair, porque ainda quero construir muito.

Finalizando, agradeço de coração a todas as pessoas que passearam pelas crônicas e que de alguma forma sentiram o perfume da Pinheiro no ar ...

Às “meninas & meninos – homens & mulheres (todos os protagonistas), a certeza de que fizeram parte integrante do que sou hoje - não um modelo de mulher, mas um modelo de quem busca a felicidade nas pequenas coisas e sabe, sobretudo, que nada é construído de forma isolada. Que continuemos unidos, mesmo que na grande maioria do tempo, muito separados fisicamente. Infelizmente!

sábado, 16 de outubro de 2010

Capítulos da Josi - Eleições

Eleições


Fiz parte de uma geração cuja palavra de ordem era intensidade. Tudo tinha que ser extremo. Viver intensamente, amar intensamente, defender suas posições com unhas e dentes.

Tá certo que o meu sangue leonino também gosta disso, não dá pra por toda a culpa na cultura social, mas atravessei a adolescência num período em que radicalismo era bonito. Tanto é assim que a minha geração, pais e mães hoje, ainda passam isso aos filhos. As crianças nascem e a primeira foto é com a camiseta de um time, já no hospital; antes de balbuciarem mamãe, já cantam partes do hino do clube e quando crescem é pior, passam todos os almoços de domingo tendo que responder se é gremista ou colorado, xavante ou pelotas. E para acabar com a função, a criança que opta por não responder é duplamente massacrada, até que diga um dos times e mais, afirme que ODEIA o outro. Quando não passa pela tarefa de pisar em cima da camisa do adversário.

Nós mesmos já passamos por isso, já nos obrigamos a tomar um partido e não modificá-lo jamais, sob pena de ficarmos eternamente estigmatizados de “vira casaca”.

E quem vive sob essa pressão de ter que se posicionar corretamente sempre, para evitar as críticas de voltar atrás, acaba agindo pela maioria. Apenas ouvem e sem analisar outro lado, sem aplicar o que foi dito a sua vida e as necessidades daquele momento saem repetindo como papagaios.

Prova disso foi a expressiva votação que teve Marina Silva do Partido Verde. Isso não é uma crítica a candidata ou seu eleitorado. Quero apenas explicar que embalados pela onda verde mundial, desastres ecológicos, aquecimento global, destruição da natureza, Marina usou somente esse discurso para obter 20% da confiança dos brasileiros, mesmo sabendo que nosso país, sobre isso, está em ampla vantagem comparado a destruição ecológica de outros países.

O Brasil vive uma onda de violência que aumenta a cada dia, penitenciárias inúteis, sistema de segurança defasado, fiscalização precária. Além disso, estradas ruins ou pedagiadas, que não dão segurança e matam mais do que guerras; escolas decadentes; entre tantos outros problemas que todos convivem. Mas muita gente me dizia: vou votar na Marina porque precisamos salvar o meio ambiente. Qualquer justificativa me convenceria, desde que considerasse que para governar um país não basta repetir o discurso demagógico e ideal.

Não é a quem o voto foi dado que me incomoda, mas a forma que foi dado. Seja lá quem for o candidato, se mereceu o voto pela análise crítica entendo que foi um voto válido, mas fazer coro com o discurso bonito para evitar derrota do seu ponto de vista me soa trágico.

Nem vou entrar nos votos dados ao palhaço Tiririca, pois teria que enfrentar uma séria discussão sobre democracia em um país tão bizarro quanto seus eleitos.

Apenas sustento que a visão apolítica em todas as esferas, não só partidária, aliada a obrigação moral de se posicionar corretamente e defender intensamente, nos torna cada vez mais alienados e acomodados. Na dúvida, pra não ficar em cima do muro, minha opinião é a mesma tua e vou usar as tuas palavras para justificar a minha ideia. Tenho ainda a voz da imprensa, que pensa como eu, não eu como ela.

São José do Norte tem uma das disputas políticas mais acirradas que conheço. Por ser uma cidade pequena, a aproximação e familiaridade entre as pessoas faz com que gravem cada palavra que foi dita; e ser flexível pode levar a pena irreversível de desmoralização social. Duvidam? Todo o dia, antes de pegar a lancha para ir à faculdade, passava na frente da sala de um amigo, parava e tomava um mate com ele, depois seguia. Esse amigo era filho de um candidato do PMDB e eu filha do presidente do PP, quando começaram as campanhas, a sala virou comitê do pai dele e um dia, na minha passada para o mate, fui expulsa dali. O meu amigo, sob xingamentos saiu junto e fomos tomar o mate do outro lado da calçada.

Só essa? Não...meu vizinho (de outro partido) em época de campanha, para ir a minha casa, precisava do apoio de várias pessoas para cuidar a rua, até que não houvesse uma alma, correndo ele saia da casa dele e entrava na minha. Tudo isso só pra falar sobre o tempo, os horários da barca...

Hoje, distante do Norte e mais madura, revejo o meu radicalismo e as minhas (im)posições. Não tenho filhos (ainda) mas como mãe pretendo deixar bem claro que ninguém está obrigado a tomar decisões precisas, irrefutáveis e imediatas. Deixem que voltem atrás pra corrigir, tudo na vida tem conserto, só o que não tem é a morte, porque essa eu não sei como funciona.

Penso que ponderar é a forma mais intensa e difícil de viver. Há algum tempo adotei a palavra EQUILÍBRIO pra mim, mas é difícil, quem sabe se treinar desde pequeno prospere.

Conheço o verso e não sei o Autor, mesmo sem os devidos créditos não posse deixar de passar a mensagem: “As caliandras que existem no meu peito não nasceram para andar como caturras repetido no mais o que lhes ensinam!”

Josi Borges

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Memórias da Pinheiro por Rosalva Rocha

A PINHEIRO MACHADO E O FURTO DOS CHURRASCOS

(por Rosalva Rocha – 27/09/2010)


Há pessoas que fazem das suas vidas um palco muito colorido e divertido, abrigando “peças teatrais” que ficarão na história.

E, agradecendo a todos os Santos, me permito deixar aqui registrado que passei a minha infância e adolescência participando desse palco, não como protagonista, mas como uma mera coadjuvante, sempre muito entusiasmada.

Esta crônica deixa uma homenagem a um homem, na minha opinião, incomum, que nos deixou há pouco tempo, mas que as marcas ficarão fixadas na nossa memória sempre de uma forma muito alegre, criativa e divertida – O Sr. Ênio Holmer.

Grandão e brincalhão como era o seu coração.

Tinha uma afinidade incontestável com o meu pai, também protagonista do mesmo palco, da mesma criação das peças.

Faziam “misérias” e hoje, pensando no passado, tenho a sensação de que, ao lado do seu trabalho duro, sempre reservavam um tempo para ludibriarem os revezes da vida e deixar os amigos – os verdadeiros amigos - mais alegres. E sempre conseguiam.

Vez ou outra costumavam, aos domingos, roubarem, sorrateiramente, o churrasco feito pelo outro ao meio-dia e, subitamente aparecerem na casa do “feitor” para convidá-lo, juntamente com toda a sua família, para comer um churrasco maravilhoso, que nada mais era do que o seu próprio churrasco, já assado e tudo. E tudo transcorria na maior festa, sempre regada a muita cervejinha. Se bem que o Sr. Ênio sempre gostou de um bom vinho.

Faziam excursões cinematográficas à Boa Esperança para comprarem vinho, e não raras vezes me deixavam na “Casa das Freiras” para poderem curtir melhor os seus momentos de amizade. E lá, de olho nas freiras, sempre deixavam uma determinação: “prá ela somente vinho doce – ela ainda é uma criança!”. Não preciso falar que nunca mais na minha vida suportei tomar vinho doce. Muitos porres me foram dados pelos “artistas”, sempre atenuados por remedinhos caseiros feitos pela minha mãe quando da minha chegada em casa que, obviamente, me recebia embravecida com as facetas dos dois.

Costumavam fazer visitas rápidas um ao outro, coisa que atualmente quase não mais ocorre entre os amigos e, nelas, sempre havia uma ou outra história das criatividades vividas – se bem que até hoje não sei se eram ou não verídicas, pois a sua imaginação não tinha limites. Os fatos, a cada dia, tomavam contornos diferentes – eram sempre acrescidos de alguma situação engraçada.

Gostaria de continuar convivendo com artistas assim, que pensavam a vida de uma forma diferente, que “matavam” pessoas “vivas” pelo simples prazer de rir e, especialmente porque a morte prá eles nada mais era do que uma coisa normal, tão normal que se foram um pouco mais cedo (o meu pai nem se fala!), mas certamente de alma lavada por terem curtido de forma intensa o período a que eles foi destinado.

No dia do falecimento do Sr. Ênio eu comentei com a minha mãe: “Mãe, o Pai deve estar muito feliz! – Reencontrará o amigo!

Também não preciso deixar aqui registrado que o funeral foi digno da pessoa que ele sempre foi, com a esposa e os filhos muito tristes, mas conformados, rodeado de netos que sempre o adoraram e amigos que lá estiverem para dar simplesmente um “adeus” a um homem que deixará saudades eternas.

A minha única dúvida é se os dois artistas já se encontraram, e se “por lá” há churrasqueira. Porque, se houver, certamente algum furto já foi feito, mesmo em tão pouco tempo. Certamente eles têm muito que recordar ...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Vamos caminhar?


Domingo, 10 de outubro
Saída da Praça da Matriz, às 8h
Almoço na localidade de Canto dos Guilhermes
Informações: cassinhamessage@gmail.com

Mais ao Sul - por Christian Davesac

Las Yerras

“Cuando llegaban las yerras, cosa que daba calor

tanto gaucho pialador y tironeador sin yel...

Mal e mal o sol despontava no horizonte, alguns rabos de galo se avistavam ao longe, e já serpenteávamos a cordilheira da serra do sudeste, pelo interior do município de Canguçu, em direção a estância São João da Armada, dos meus amigos Ribeiro. Saímos cedo, antes de clarear, íamos tomando mate (por enquanto). Sobe um morro, desce outro, às vezes um braço de rio se avista... é o Camaquã, o rio correntoso, ou rio forte, conforme sua etimologia; me parecia um tanto caudaloso na sua fase alta, rio que nasce na campanha, desde Lavras do Sul, Bagé e Dom Pedrito, drena as encostas de Pinheiro Machado, Piratini, Santana da Boa Vista, Canguçu, Encruzilhada do Sul, até Tapes, Barra do Ribeiro, Sentinela do Sul pra despejar suas águas na Lagoa dos Patos, na altura de Camaquã e São Lourenço do Sul.

Saímos de parceria de Pelotas, cedo, bem cedo, a tempo de ainda com o sereno da manhã re-espicharmos os laços, o cebo de ovelha passado dias antes não tinha penetrado completamente, mas nada que o gosto de pêlos num cimbronaço ou outro, e um rebolcão na terra batida da mangueira antiga não acomodasse os tentos novamente.

Chegando a Estância, a terneirada apartada nos bretes desde a madrugada, mugia comprido, ainda levantava uma fumaça dos couros, era o calor do pasto nativo maduro em contato com a manhã fria de abril que se fazia presente no viço dos animais, antecedendo o inverno rigoroso que se vislumbrava. Baios, brancos, fumaças, algum osco das tambeiras, mas enfim, uma tropa parelha, que daí a uns dois anos vai embarcar num boiadeiro pra engraxar os bigodes de algum cola fina da cidade grande.

Bueno, sete e pico e a manhã velha já se encurtando, pulamos pra mangueira, desenrodilhamos os laços e dê-lhe boca... solta o primeiro, umas quantas voltas até calibrar os pulsos, o segundo, o terceiro, até que a coisa pega forma entre peões de campo e peões de calça corrida, íamos parelho... uma turma peala, outra aperta, pra função da marca, sinal e capa... depois o serviço nas brasas vai se ajuntando pra o tempero da salmoura, e o café das dez para tutanear os ossos e agüentar mais um tranco de laço. Um metia de cucharra, (feição que se faz no feitio da colher pra se pealar, sempre de laço curto, tipo uma pescaria acompanhando-se o andar do novilho, até atirar o laço pra o feitio das mãos), outro de bolcado (onde se quebra o pulso pra face medial e se atira em direção a frente do boi e pra baixo, o laço ao tombar no chão, repica e pelo movimento da mão, se arma novamente, pra aguardar o galope do boi e se fechar nas mãos, armada comprida e certeira de quem bem sabe) e até de sobre lombo (depois de o animal passar por algum canhoto atrapalhando, pega a volta contrária, onde a feição só se dá por cima da paleta, tiro de todo laço e com rodilhas, bueno a campo fora, pra que se enganche no compasso do galope, e também o mais fácil de afirmar depois de cerrado nas mãos).

Me lembro de várias yerras (se pronuncia jerra) ou marcações, como na Tamanca, Rincão, Tradição, Tapera, Arroio das Pedras, mas me criei indo na do meu padrinho, conhecida pelos outros que não o dono como Estância do Relacho, mas também, o homem só chegava lá fora pra jogar uma bocha, e tempo vai e vem, 2500ha de campo, um dia o capataz tava marcando mais que ele, aí nem sei se ele se deu conta, mas resolveu entregar pra o neto torrar de vez (Deus da bolacha pra quem não tem dente!), e depois o véio se foi.

Depois do serviço feito, uma carne gorda num assado de chão, e um se apresenta de gaiteiro e outro de trovador, segue o baile em cantoria e algum traguinho, a conversa se encorpa, sobre assuntos mais remotos, mas geralmente na empulhação de algum tiro de laço mal dado, um pealo contrário ou simplesmente, o tempo, assunto dos mais graúdos... chove ou não chove neste inverno?!

Ao pé da tarde, por capricho, damos uma revisada nas éguas. Crioulas em preparo e depois nas de cria ao pé, na costa do mesmo Camaquã, que numa volta inunda às várzeas com sua fertilidade de grama boiadeira, capim melador, pega-pega e cevadilhas... Manada zaina e colorada, da descendência do raçador Atropelo, inclusive as éguas do freio de ouro, JW Serena e JW Batinga, que dão mostra do bom manejo.

Cai a noite fria e silenciosa, um piar de corujas assombrando a lua grande, agora o silêncio dos laços nos contam que ali ainda existe Rio Grande - mesmo com o avanço necessário da tecnologia das mangueiras e a sua comprovada eficiência e facilidade -, por mais que pareçam nossas estampas, às vezes um tanto citadinas, temos no coração e na palma das próprias mãos, surradas da lida, o prazer de saber que, quem não sabe de onde vem, não conhece pra onde vai, assim, segue o tempo, na vagarosa ou vertiginosa sinuosidade dos rios como o Camaquã, com sede e perfume de campo, e aos olhos úmidos de quem, apesar das adversidades de todo o tipo, ainda produz pra engordar os cofres do País.

!Ah tiempos... pero sin en el... se ha visto tanto primor!”

Martin Fierro - José Hernández (1834-1886)

Christian Davesac

Rincão das Corticeiras, 04 de outubro de2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Alegria, alegria

É, parece que nosso estimado blog vai mesmo emplacar o segundo ano com força total.
Antigos colaboradores seguem firme em suas publicações.
E para inaugurar nosso segundo ano, Solide Costa, Christian Davesac e, agora, Luiz Nicanor Araújo da Silva, ele mesmo, Dr. Nicanor, após meses de insistência de minha parte e promessas não cumpridas da dele, me manda sua primeira publicação para o Insônias.
Hoje inaugura sua coluna, intitulada "Revista do Nicanor" com nada menos do que uma apreciação do novo livro da poetiza patrulhense Ivone Selistre - Fragmentos.
Este blog ainda vai tirar o sono de muitos leitores.
Que assim seja!
- Cássia -

Revista do Nicanor

IVONE SELISTRE: FRAGMENTOS POÉTICOS E FILOSÓFICOS


Sem dúvida ninguém ficou por demais surpresos ante o novo livro de poesias Fragmentos de Ivone Selistre, pois, juntamente com Regina Barcellos e outros escritores, ela é sabidamente uma das expressões máximas da cultura em nossa terra, em pleno domínio do fazer poético e das artes literárias. Mas, de qualquer maneira, mesmo sendo todos nós conhecedores da capacidade artística da autora, ela soube usar artifícios que vieram a surpreender evidentemente a nós, seus leitores, pela originalidade sutil de apresentar os temas, embutindo pensamentos filosóficos em suas figuras poéticas, em forma de fragmentos.

Muito bem colocado o título, pois, como poesia é sugestão, além dos comentários filosóficos, volta e meia surpreende o leitor com um poema isolado, curto, tal uma ilha paradisíaca, a se destacar entre os demais, com uma figura original e ímpar.

Talvez o tema mais destacado seja a maturidade, a velhice, mas, mesmo sendo uma discussão inócua, sabemos quão importante é chegar aos 85 anos, pois, quem festeja esta idade, garantidamente chegou lá. E, com isso, tem a realização de apresentar uma obra com um condimento de ternura, com orelhas escritas por netos, poemas de filhos, poema de amiga, apresentação da irmã, também poetisa renomada. Iolanda Rosa declara: “Porém, hoje, realizas o grande sonho de tua vida, há muito por ti alimentado, lanças um livro em parceria com filhos e netos”.

A autora dedica: “À minha grande e querida Família, razão do meu viver”.

O primeiro poema Retrato: Dos sonhos sonhados, / ou não realizados, / seu olhar confirma / que foi feliz”.

O segundo, dedicado à tia Francisca Villa Verde Carvalho e Toninho Selistre escreve Lendo nos olhos de minha mãe, onde declara: nunca conheci minha vó materna.

Outro detalhe que a autora gravou em bronze eterno em sua obra é a saudade de nossa antiga Vila de Santo Antônio. O poema, Vila de Santo Antônio, além de antológico e obrigatório em qualquer estudo que mencione Ivone Selistre, vale como um hino, uma apoteose à nossa cidade. Não se trata de um poema novo, já citado duas vezes em Poesia na Praça, no meu trabalho sobre os escritores patrulhenses, e acredito que em mais lugares: [...] velhas casas são madonas / frente a ruas, / debruçadas. [...] No rastejar sinuoso / das serpentes de cimento / tradições / são epitáfios, / gravados no esquecimento. [...] Onde o silêncio de frades / na penumbra das capelas? / [...] guarda o tamanco, / o recato, / a almofada da janela, / a tradição, / o seu santo, / na alcova da donzela; [...] Rosário, / de fio precioso, / circundando a velha Igreja / o casario, reverente, / que se curva dia a dia, / murmura silente prece / ao soar da Ave-Maria.

Segue um soneto Minha “Villa”, com retorno ao tema: Dos beirais do tempo, a saudade tece / entrelaçadas teias de lembranças, / [...] Sonolentas horas, à mercê dos anos, / vão dizimando, um a um, seus decanos, / gerando solidão e despedida.

Em retrospecção volta ao tema da velhice, sem esquecer a Vila: A embalar-se / na cadeira acolchoada de lembranças, / a anciã contempla a noite sem lua. [...] Do campo-santo, ao alto da colina, / vivo clarão, súbito, ilumina, / por inteiro, da Vila, os casarões, / onde afetos se desvaneceram / e o tempo afugentou as emoções [...]. Em Procissões: Habita em mim um templo centenário [...] O sino do templo, com mudos clamores, / traz pelas ruas imagens sobre andores / à procura do que não existe mais. Cofre do Tempo: Tanta saudade / de meninice / acumulada / no rol da velhice. [...] Quantas lembranças / - fiapos de vida – / no cofre do tempo / co’a chave perdida. Veredas: Saudade dobrou esquina / ao encontro da solidão [...] Tempo: Tão invisível, / sempre estiveste / vivendo comigo, / dia após dia [...] me lapidavas / e eu não sabia. // Mas vejo agora / em ti refletida, / a minha imagem / envelhecida. Velhice: Cresce em minhas entranhas / algo que não gerei / e, feroz, [...] limita os meus poderes, / me faz tropeçar na vida [...] Devaneio: Oh! Primavera, / por que não colores / as marcas do meu inverno? Desesperança: Inclino-me na vida / para colher os cacos / que dela fiz. Maturidade: Despe-se a natureza, / em letárgico sono, / para dourar a vida /com as folhas de outono. Relógio (de Toninho Selistre): A cada canto me fitas / em censura sagrada, / avalias a minha vida / na tua clausura lacrada. [...] Mede o tempo / a destempo da vida, / que não seja na morte / tua última batida. Não sei... Não sei... (resposta da autora): Em que instante perdi / a graça de ser criança, [...] o encanto da inocência, [...] o meu dom de ser poeta [...] Não sei, não sei... / Só o tempo, / na precisão do relógio, [...] – quando ao destino das horas, / os anjos disserem amém. À amiga de infância (de Maria Aparecida Selistre): Há muito tempo não te escrevo, / ficaram velhas as notícias / e assim como elas / eu também envelheci. // Mas ficaram no tempo as lembranças / daquelas duas crianças [...] Hoje me ponho a escrever. / Numa busca alucinada / procuro a criança amada / que no tempo eu perdi. Alma peregrina: Trazendo nas sandálias / o pó do caminho, / adentra a catedral do tempo / sem jamais ter feito ninho. [...] Arrastando cansaços / em arabescos do ladrilho, / pensa santos mutilados / com o manto maltrapilho. Alto preço: Pago à velhice, / tributo por ter sido jovem. Tédio: [...] e enfrenta o mesmo todo dia, / sem pensar o dia todo / que / assim / será / amanhã. Mistério doloroso: Sonhando, escuto, como num lamento, / vozes de anjos [...] entoam réquiem à minha poesia. // Impotente, de andar, cansado, / entrego, ao Senhor, o meu cajado. Companheiro maravilhoso (resposta de Geny Sardenberg): [...] com Jesus ao lado [...] encurto distâncias apoiada em seus braços. [...] Impotente, para andar isolado, / entrego ao bom Deus o meu cuidado. Ângelus: [...] o bronze faz soar o sino [...] ao fim do dia [...] a despedir-se da poesia, / vê o poeta, no ocaso, o destino / do próprio fim que principia. [...] Desrazão: [...] Morte... poço de mistério / na vala do cemitério / onde cala o coração aflito / e se desfaz o eco do meu grito. [...] Funeral: Sem marca / ou cansaço / seis alças de aço / preenchem espaço / em distância vazia [...] de quem já se foi [...] Divagando: Nesta tarde de verão, / quase finda [...] na pouca estrada / a ser percorrida. Ecos do silêncio da morte: A noite vela versos semimortos [...] Do poeta, a lavra, nunca esquecida, / transpõe o tempo, pois que há tanta vida, / tanta, nos ecos do silêncio da morte. Poema da madrugada: Meus passos levam-me ao nada, / vazio está meu olhar, / tão longa a vida passada / – pouco chão a palmilhar. – O mar e eu: Ouço, em silêncio, / o bramido do mar / em dueto com o meu lamento. [...] Diversidade: longos são os passos / que levam à eternidade, / embora ela nos alcance num instante. Predestinação: Um ataúde / fecha a sete chaves / meu destino. Peso pesado: Incomoda-me / esta exigente / perecível carcaça. Desgaste: O tempo escorre / pelas sarjetas da vida [...] Finitude: Deixando na bagagem, [...] as coisa que fiz / ou que desfiz, / entro no tempo [...] Nesse túnel que se estreita com a idade, [...] firo-me em cacos de saudade / ante imagens frias e cinzentas [...]

Dentre os poemas intercalados: Visão: Branca nuvem – / candelabro aceso num raio de sol. Solidariedade: Solícita, / a tristeza / sorve minhas lágrimas. Laços de ternura (Nossos filhos): [...] preciosos favos dourados, / docemente burilados, / lambuzam a vida de mel. [...]. Natura: [...] peço ao homem, / (sob esse céu estranho) / que viva / para o fim que foi criado. Decrepitude: O côncavo espelho do meu íntimo, / reflete imagem de estranha mulher. Crepúsculo: Súbito, o anoitecer / apaga a paisagem do dia. Descaso: Na corola do meu coração [...] Vivendo: De carona com a felicidade [...] Do passado: Da catacumba onde mora o tempo [...] Do presente...: Cada momento, / desfiando presente, / tece passado. Sol no horizonte: [...] onde o sol desaparece, [...] até que a noite, aos poucos, escurece / para acender estrelas apagadas [...] Sensações: No caminho / pedras indormidas / ásperas pedras / ferem o andar [...] Passarela: A aurora vestindo conchas, / com cheiro de maresia, / no mar, esteira de prata / para o desfile do dia. Alma: Revestindo-se de imortalidade, / alcança o infinito. Desalento: Em vão, tento consertar / pontos malfeitos do destino. Desordem: Nas gavetas do tempo / guardo recordações / que se perdem. Incógnita: Terá fundo / o abismo profundo / que é o mundo? Violeta (À prima Laura Villa Verde): [...] Apenas quem é sensível, / vê o que tem de visível / no mistério desta flor. [...] Sílvia Rosa da Rocha (À querida afilhada Sílvia): [...] Delicada “Rosa” de essência pura [...] Tendo de “ROCHA” a fé como legado (trocadilhos). Feitiço da lua (Lagoa dos Barros – lenda): O clarão da lua cheia / sobre as águas da lagoa / desperta mulher-sereia [...] Realização: Este rio instável [...] incógnito, / segreda às conchas, / o sonho de ali chegar. A quem amo: Lembra-te de mim / ante a natureza [...] Lembra-te de mim / ante a grandeza [...] Lembra-te de mim / numa criança, [...] na alegria, [...] na tristeza [...] Lembra-te de mim...

Além destes fragmentos, muito mais poderia ser citado, não esquecendo a moldura do livro nos textos de Thomas Selistre e Marcela Selistre Oliveira, nas orelhas.

Parabéns a nossa ilustre confreira Ivone Selistre por obra tão bela e que obriga o leitor a pensar.


LUIZ NICANOR