terça-feira, 5 de outubro de 2010

Mais ao Sul - por Christian Davesac

Las Yerras

“Cuando llegaban las yerras, cosa que daba calor

tanto gaucho pialador y tironeador sin yel...

Mal e mal o sol despontava no horizonte, alguns rabos de galo se avistavam ao longe, e já serpenteávamos a cordilheira da serra do sudeste, pelo interior do município de Canguçu, em direção a estância São João da Armada, dos meus amigos Ribeiro. Saímos cedo, antes de clarear, íamos tomando mate (por enquanto). Sobe um morro, desce outro, às vezes um braço de rio se avista... é o Camaquã, o rio correntoso, ou rio forte, conforme sua etimologia; me parecia um tanto caudaloso na sua fase alta, rio que nasce na campanha, desde Lavras do Sul, Bagé e Dom Pedrito, drena as encostas de Pinheiro Machado, Piratini, Santana da Boa Vista, Canguçu, Encruzilhada do Sul, até Tapes, Barra do Ribeiro, Sentinela do Sul pra despejar suas águas na Lagoa dos Patos, na altura de Camaquã e São Lourenço do Sul.

Saímos de parceria de Pelotas, cedo, bem cedo, a tempo de ainda com o sereno da manhã re-espicharmos os laços, o cebo de ovelha passado dias antes não tinha penetrado completamente, mas nada que o gosto de pêlos num cimbronaço ou outro, e um rebolcão na terra batida da mangueira antiga não acomodasse os tentos novamente.

Chegando a Estância, a terneirada apartada nos bretes desde a madrugada, mugia comprido, ainda levantava uma fumaça dos couros, era o calor do pasto nativo maduro em contato com a manhã fria de abril que se fazia presente no viço dos animais, antecedendo o inverno rigoroso que se vislumbrava. Baios, brancos, fumaças, algum osco das tambeiras, mas enfim, uma tropa parelha, que daí a uns dois anos vai embarcar num boiadeiro pra engraxar os bigodes de algum cola fina da cidade grande.

Bueno, sete e pico e a manhã velha já se encurtando, pulamos pra mangueira, desenrodilhamos os laços e dê-lhe boca... solta o primeiro, umas quantas voltas até calibrar os pulsos, o segundo, o terceiro, até que a coisa pega forma entre peões de campo e peões de calça corrida, íamos parelho... uma turma peala, outra aperta, pra função da marca, sinal e capa... depois o serviço nas brasas vai se ajuntando pra o tempero da salmoura, e o café das dez para tutanear os ossos e agüentar mais um tranco de laço. Um metia de cucharra, (feição que se faz no feitio da colher pra se pealar, sempre de laço curto, tipo uma pescaria acompanhando-se o andar do novilho, até atirar o laço pra o feitio das mãos), outro de bolcado (onde se quebra o pulso pra face medial e se atira em direção a frente do boi e pra baixo, o laço ao tombar no chão, repica e pelo movimento da mão, se arma novamente, pra aguardar o galope do boi e se fechar nas mãos, armada comprida e certeira de quem bem sabe) e até de sobre lombo (depois de o animal passar por algum canhoto atrapalhando, pega a volta contrária, onde a feição só se dá por cima da paleta, tiro de todo laço e com rodilhas, bueno a campo fora, pra que se enganche no compasso do galope, e também o mais fácil de afirmar depois de cerrado nas mãos).

Me lembro de várias yerras (se pronuncia jerra) ou marcações, como na Tamanca, Rincão, Tradição, Tapera, Arroio das Pedras, mas me criei indo na do meu padrinho, conhecida pelos outros que não o dono como Estância do Relacho, mas também, o homem só chegava lá fora pra jogar uma bocha, e tempo vai e vem, 2500ha de campo, um dia o capataz tava marcando mais que ele, aí nem sei se ele se deu conta, mas resolveu entregar pra o neto torrar de vez (Deus da bolacha pra quem não tem dente!), e depois o véio se foi.

Depois do serviço feito, uma carne gorda num assado de chão, e um se apresenta de gaiteiro e outro de trovador, segue o baile em cantoria e algum traguinho, a conversa se encorpa, sobre assuntos mais remotos, mas geralmente na empulhação de algum tiro de laço mal dado, um pealo contrário ou simplesmente, o tempo, assunto dos mais graúdos... chove ou não chove neste inverno?!

Ao pé da tarde, por capricho, damos uma revisada nas éguas. Crioulas em preparo e depois nas de cria ao pé, na costa do mesmo Camaquã, que numa volta inunda às várzeas com sua fertilidade de grama boiadeira, capim melador, pega-pega e cevadilhas... Manada zaina e colorada, da descendência do raçador Atropelo, inclusive as éguas do freio de ouro, JW Serena e JW Batinga, que dão mostra do bom manejo.

Cai a noite fria e silenciosa, um piar de corujas assombrando a lua grande, agora o silêncio dos laços nos contam que ali ainda existe Rio Grande - mesmo com o avanço necessário da tecnologia das mangueiras e a sua comprovada eficiência e facilidade -, por mais que pareçam nossas estampas, às vezes um tanto citadinas, temos no coração e na palma das próprias mãos, surradas da lida, o prazer de saber que, quem não sabe de onde vem, não conhece pra onde vai, assim, segue o tempo, na vagarosa ou vertiginosa sinuosidade dos rios como o Camaquã, com sede e perfume de campo, e aos olhos úmidos de quem, apesar das adversidades de todo o tipo, ainda produz pra engordar os cofres do País.

!Ah tiempos... pero sin en el... se ha visto tanto primor!”

Martin Fierro - José Hernández (1834-1886)

Christian Davesac

Rincão das Corticeiras, 04 de outubro de2010

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