quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Pérolas do Rico - Avessos

Os Mandamentos.
Tinha eu oito ou nove anos quando fui estudar nas freiras. Morava no barro Vermelho e tinha freqüentado dois pedaços do ano no colégio local. Mas acabei iniciando no primeiro ano do primário no colégio da Vila.

Vinha de ônibus. Naquela época, quem fazia a linha era o Miraguaia, com o S. João Calais de motorista, a empresa Jaeger e a Santos Dumont. Tinha muitos alunos que vinham do Passo do Sabiá, Vila Palmeira, Venturosa, Miraguaia e até da Glorinha.

Muitas coisas começaram a mudar na minha vida. Desde o uniforme caqui e o casquete. Comecei a ter compromissos que até então não tinha.

Possuía muitos amigos no Barro Vermelho. Eram guris simples que, normalmente, trabalhavam nas roças, nos engenhos de cana. Passavam a semana trabalhando e domingo cedo iam caçar de gaiola na várzea do S. Antonio Pereira, uns diziam Geada, outros do S. Crescêncio Gabila.

A várzea era um tipo de enseada plana, que começava parecendo que tinha devorado um eito do morro, atrás do Barro Vermelho e antes de iniciar o Arroio da Madeira. Em volta era mata fechada e plantação de cana. Na várzea era campo cheio de figueiras e malhas de maricas. As figueiras eram cobertas de frutinhas que os passarinhos gostavam de comer. Parecia que a mata isolada do movimento era um dormitório dos finfins, serraninhos miúdos e cascais serranos e que, bem cedo, ao raiar do dia, vinham fazer a primeira refeição da manhã, naquelas figueiras de grandes malhas de plantas que grudavam nos galhos e produziam os frutos que os pássaros tanto apreciavam.

Nunca pude fazer o que os meus amigos faziam, ir bem cedo para a várzea, escolher um bom lugar e armar um alçapão da gaiola, com uma boa chama dentro.

Não sei por que, acho que estava fazendo catequese. Era obrigado a ir à missa do domingo, às 8 da manhã. Além de ter que saber os mandamentos do catecismo, as freiras exigiam a presença na missa dominical, além da minha mãe, que também determinava, sem poder faltar.

Saía eu de bicicleta faixa afora. Subia a lomba e ia à missa das oito, na igreja da Vila, ao lado do colégio. Quando terminava a missa, nunca antes das nove, eu pegava a bicicleta, dava tudo que podia e me tocava para casa. Trocava a roupa na corrida, pegava a gaiola e saía rumo à várzea. Entrava na porteira do S. Cristino Gomes, ia pelo campo até a lomba do S. Nenzinho e pegava a estrada embarrada que ia até o fundo da várzea.

Como já era tarde da manhã, encontrava alguns amigos caçadores que já estavam voltando. Uns porque já tinham pego algum pássaro, outros porque haviam desistido.

Quando me aproximava da várzea, deixava a estrada, descia numa roça de cana, varava a cerca e começava a caminhar na grama, rumo às figueiras.

Pelo caminho ia encontrando o Antônio e o Renato, filhos do S. França Gomes, os filhos do S. Juca Eufrázio, o Alcindo e o Cabinho do S. Chico Alurino, o Lauro da D. Joviana, o Ilson, o João e o Bitinho, filhos do Necão – os que mais pegavam – o Dilon Gabila e, às vezes outros, mais alguns guris que vinham do Arroio da Madeira e até do Passo do Sabiá. Uns já haviam abandonado os seus postos e já se preparavam para ir embora, outros ainda estavam em suas trincheiras na busca de pegar os coloridos, machinhos dos cascais serranos e dos serraninhos miúdos.

- Quando clareou o dia estava qualhado de bichos, agora foi tudo embora. – De vez em quando volta um perdido, mas já estão ariscos, falou o Ilson, que era bem meu amigo.

Atirava a minha linha de varejo, com uma pedra amarrada na ponta sobre um galho de figueira e alçava a minha gaiola da esperança de aparecer um daqueles bem coloridos e caísse no meu alçapão.

Mas o tempo era muito pouco. Já beirava às onze horas e começavam todos a recolher suas gaiolas e prepararem-se para ir embora, pois à tarde tinha jogo de futebol e ninguém queria perder.

Os amigos mais atenciosos sempre diziam: - Vens mais cedo no domingo que vem. – Chegando mais cedo tem chance de pegar. – Esta hora a maioria foi embora para o mato e os que ainda aparecem já estão ariscos, já de papo cheio e nem chegam perto das gaiolas.
Quando via, o pedaço da minha manhã tinha passado. Passou voando também o meu tempo de guri e eu não aprendi os mandamentos da várzea, um viveiro nato de tantos bichos bonitos, que nem sei se ainda existe.
- Joelson M. Oliveira -

Um comentário:

  1. O mesmo jeito peculiar de escrever ... e muito gostoso de ler. Ah ... as missas!!! Não que eu me arrependa (longe disto!), mas quantas brincadeiras eu perdí pelo compromisso que me era imposto. E não tinha negociação mesmo. Rosalva

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